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A Toca do Coelho

"Quem, de três milênios,
Não é capaz de se dar conta
Vive na ignorância, na sombra,
À mercê dos dias, do tempo."

Goethe

quinta-feira, 3 de novembro de 2011

The Infernal Comedy - Uma cronítica


"A verdade é um mentira que aconteceu." Luis Fernando Veríssimo

Já era tarde e quarta-feira quando saí daquele bar em Botafogo que sentenciava o meu dia de mergulhos extremos a um último trago. De anti-ácido agora. Era bem tarde e alcoólica demais para ater-me a preocupações prosaicas como blitz, acordar cedo, chaves do carro, "nada de humanos assuntos" diria Cecília - artista gosta de sentir-se voando acima de toda a iniquidade do mundo mesmo quando este mesmo mundo não o permite ao menos caminhar. Era bem tarde, frio e cantarolando um verso feio tropecei em Jhon Malkovich no ponto de ônibus. "Perdão, senhor. A que devo a honra?" O ponto se justificou com umas cores e luzes ofuscantes de um espetáculo no Teatro Municipal. Uma referência desse quilate em solo nacional era imperdível. "The Infernal Comedy" - Confissões de um Serial killer. Tema super interessante, rico, um prato cheio pra qualquer ator e uma promessa gastronômica de fazer abrir o apetite dramatúrgico com um mês de antecedência.

Enquanto meu estômago reclamava, garanti meu lugar na festa e de aperitivo, assisti  a outros espetaculozinhos daqui, feito por aqui mesmo, com gente daqui, preparando meu corpo e espírito para receber com dignidade e aproveitamento esta  inspiração internacional  que sublime estaria à poucos metros de distância. Eu, acostumada à pobreza do teatro brasileiro, à fome de recursos, à precariedade de infraestrutura, às migalhas de incentivo, ao fracasso, ao pequeno público vi o Teatro Municipal lotar. Bibi Ferreira compunha o elenco de uma platéia seleta reunida em cadeiras que iam cem à três mil reais. Fotógrafos, jornalistas, escritores, a elite intelectual carioca em peso estava presente para prestigiar a única apresentação da estrela.

Passei antes num sarau à beira mar para rever uns amigos, cuspir uns poemas e partir então, rumo à grande noite. Depois do terceiro sinal meu coração disparou e eu me sentia incendiada, febril. Meu trato pulsava ansiando pelo prato principal. O maestro iniciou a pequena orquestra. Em seguida a estrela da noite apresentou a si e duas cantoras líricas que contracenariam com ele. Acima, a legenda em português.

Conversa vai, conversa vem...

Quando depois de uma hora longa o espetáculo enfim terminou deixei a sala com vergonha das minhas próprias reflexões: "acho que ainda não alcancei o nível de trancendência necessária para apreciar um espetáculo como este com a devida competência". Calei e saí do teatro ruminando o prato com minha alma artística pobre, porém inquieta. Enquanto a elite intelectual carioca perdia a pose e se acotovelava na Cinelândia um busca de taxis insuficientes,ouvia comentários do tipo "texto meio pobre, né" , " eu não entendi P nenhuma" , "empenhei meu colar para ver isto"  e outros mais sórdidos. Os mais educados diziam algo como "um paradigma diferente" e o acampamento contra a corrupção em frente assustou os turistas que agarraram suas bolsas pensando se tratar de uma população de rua descontrolada .

Meu espanto converteu-se numa reflexão. Sucesso e qualidade não caminham juntos na maioria das vezes. No mundo da arte o fracasso é quase uma sentença das grandes obras, dos grandes legados. O talento genuíno, aquele impulso visceral que beira à loucura, caminha à margem da sociedade. O preço da vanguarda é a incompreensão. Esta dificuldade e a falta de recursos aguçam uma insatisfação e uma criatividade que gera um ritmo perene, apaixonado e suicida de expressão, de grito, de entrega, de arte no sentido mais estomacal da palavra.

 O Show business é, antes do show, um business e, por tanto, deve ser mediano (para não dizer medíocre) o suficiente  para que esta indústria alcance o grande público, se sustente e gere riqueza, fora os casos em que show está a serviço do comércio, da política e etc. Uma obra de arte desta abrangência e nota de importação não poderia ser sofisticada além do óbvio e trivial existencialismo manhoso. O ator cumpriu com excelência um protagonista raso e desinteressante, de um texto ralo e sem sustância. Como o bom ator que é, jogou o jogo e fez parte do todo.

Tornei ao sarau à beira mar que lá pelas tantas já estava vazio. Apenas o mestre dizia uns versos a esmo. Sentei-me ao lado de um suposto ouvinte e pedi uma feijoada. Eu estava com fome.


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